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Você já ouviu o chamado? Parte II

Pelas nossas queridas Valéria Chociai & Kelly Freitas


"Nem todos os caminhos

são para todos os caminhantes.”

Goethe


Curioso para saber como continua a caminhada da Kelly?

Não vou fazer você perder tempo algum.

Eis a continuação da Parte I do livro “40 anos em 40 dias” que ela escreveu durante sua peregrinação.

Ah, sobre a ilustração de abertura desse post?

Eu e a Fernanda da @fadamadrinhadesign adoramos o lado lúdico do trecho do livro que a imagem representa.

Nossas pequenas estripulias de infância nos vieram à tona... era tão simples ser feliz e se divertir... enfim, leia o texto e você vai descobrir sobre o que estamos falando!

Vai lá!

Buen Camino!


Logo de manhã, ao escovar os dentes, meu brinco caiu no chão.

Percebi que havia perdido a tarraxa e, como nada acontece por acaso, procurei, mas não me preocupei.

Como o ouvido estava doendo, garganta doendo e brinco perdido, pensei...

É um sinal.

Ouvir mais, falar menos Kelly!

Lembrei-me de um papel que meus amados fizeram para mim com as minhas qualidades e defeitos e procurei refletir sobre o que achavam de mim.

Essa era uma lição a aprender.

Busquei isso neste dia.

Subimos 800 m e alcançamos o Refúgio Orisson, maravilhoso, boa música, mesas grandes cheias de peregrinos de todas as partes do mundo e um atendimento sensacional!



Peguei uma tigela de chocolate quente delicioso com o dono do local, Jean Jacques, e ele perguntou meu nome.


Quando disse que era Kelly e que fiquei no Kayola, ele correu me abraçar "Oui, ces Kêllííí, amigá de Nataliá”.

Natália é esposa do Jose - o taxista amigo - e eles têm um albergue em Puente La Reina, chamado Estrela Guia.

A Natália ligou para ele pedindo para que nos recebesse, pois tivemos problemas na reserva.

Foi tão incrível!

No meio dos Pirineus, um francês feliz em me ver e falar que se eu era amiga da Natália, então era sua amiga.

O dia começou divertido e delicioso como o restante do café da manhã: pão caseiro delicioso, geleias francesas, manteiga, suco de laranja e café, leite, chá ou a tigelona de chocolate quentinho!

Antes de irmos embora, pegamos com Jean Jacques um bocadillo delicioso de presunto com queijo para viagem.

Era uma baguete com mais de 20 cm, presunto serrano e queijo de primeira, por 5€.

Durou três refeições para mim, que ainda tinha as borboletas no estômago.


Deixando a minha marca.

Seguimos agora abastecidos de comida e água para o trecho de 19 km até Roncesvalles.

Muitas subidas no início desse trecho.

O tempo extremamente nublado nos revelava aos poucos a beleza do lugar.

Uma paisagem de tirar o resto do fôlego, pois a subida de matar ia ganhando mais e mais altura até seu pico de 1400 m de altitude.

Casebres ao longe, cavalos e ovelhas enfeitavam o verde do local.


Nublado!

Muitos peregrinos caminhando à nossa frente e atrás de nós outros tantos que aos poucos iam e vinham.

Encontros e despedidas repentinas, muitos Buen Camino ditos e ouvidos.

Muitos brasileiros no caminho, festa ao encontrar e ao despedir.

Até que cada um, descobrindo seu ritmo, subia os Pirineus em busca de seus propósitos mais íntimos.

Um pouco mais de uma hora de caminhada o mapa sinalizava a Imagem da Virgem Maria.

O nevoeiro nos confundia muito e para não nos perdermos das setas amarelas estávamos quase desistindo.

Foi quando o nevoeiro se dissipou um pouco e Ela, a Virgem Maria, se revelou para nós, que demos graças por poder fazer uma oração diante de Sua imagem.



Logo após voltamos para a estrada e paramos para tirar a bota, beber e comer algo.

Foi quando um francês subia com um vira lata um “labravira” (labrador com vira lata) e parou para conversar conosco.

O “labravira” não estava parecendo muito feliz com o Caminho, estava na cara que não era sua opção.

Dividimos nossas madalenas com os cachorros.

Continuamos a subida no meio do nevoeiro.

Pouco enxergávamos à nossa frente, mas pouco a pouco fomos alcançando os pontos marcados no mapa dado pela Associação em Saint Jean Pied de Port.

De repente o sol brilhou e enxergamos uma placa com a inscrição - último carimbo francês!


Foi hilário, pois era uma van bem velha que vendia, no meio do nada, bebidas quentes, ovos cozidos, frutas, sanduíches e queijo de ovelha.


Paramos e tomamos algo para continuar a jornada.


Gastei ali 4,50€ por um chocolate quente, uma banana e um suco de caixinha.

Ao alcançarmos o abrigo dos Pirineus encontramos novamente com nossas companheiras brasileiras, uns italianos e o São Francisco, um americano de São Francisco, muito gente boa que ficou falando com a gente.


Os quilômetros marcados nas placas são incógnitas.

Aqui nos Pirineus faltavam 765km...

aí andei, andei, andei e no dia seguinte,

ao sair de Roncesvalles, faltavam 790km.

Ué?

Logo ele foi embora e nós continuamos uns minutos a mais relaxando os pés, comendo algo e planejando o restante do trajeto.

Subimos mais alguns minutos e aí o bicho pegou.

Frio, vento, chuva, nevoeiro e ainda havia uns poucos locais com neve.



No meio do nevoeiro avistamos um refúgio de segurança.


Paramos para fotos, mas rapidamente voltamos a caminhar, pois o tempo estava realmente ruim e ainda tínhamos chão pela frente.

Algum tempo depois começamos a descida para a tão esperada Roncesvalles.

Uma descida difícil pela mata.

Bem sinalizada, mas complicada em termos de pedras soltas, lama, escorregadia.

Enfim, tudo com a chuva parece ficar mais complicado mesmo.

Às 16h avistamos com muita emoção a cidade!


Alegria sem fim!!!

Parecia que eu havia chegado a Santiago.

Chorei com coração aliviado por ter vencido a etapa que mais eu temia!

Alcançamos o Albergue Municipal e fomos recebidos por hospitaleiros bascos, que não falam espanhol e preferem se comunicar em inglês.

Pagamos 10€ pelo albergue e 12€ pelo Menu Peregrino (pão, água, vinho, sopa, macarrão e peixe ou bisteca com um iogurte grego de sobremesa).

Deixamos nossas botas em uma sala no térreo e fomos procurar nossas camas 249 e 250.

Encontrei neste momento Paulo, um colega de curso da ACACS, e combinamos de jantar juntos.

O albergue era todo muito limpo, organizado e agradável.


No térreo havia um grande refeitório com muitas máquinas de alimentos e bebidas, forno de micro-ondas e muitas mesas e bancos.

Para quem não quer o Menu do Peregrino há grande variedade de pratos congelados nas máquinas.

Podem esquentar no micro e pagar entre 3€ e 5€.

Além disso, uma biblioteca e um espaço para doações que você tanto pode deixar como também pode pegar algo que esteja precisando.

Tem de tudo: calçados, roupas, acessórios, carregadores, adaptadores, cosméticos e livros, entre outras coisas.

Uma sala grande com mais de 6 máquinas de lavar louça, que não entendi o porquê até agora, e uma pequena lojinha.

Na verdade uma vitrine com produtos com o símbolo do Caminho e alguns guias.

Aproveitei e comprei um Guia Michelin por 8,50€.

Super leve e prático.

Usei o Caminho inteiro!

Coloquei meu saco de dormir sobre a cama e, como que por milagre - tanammm, achei a tarraxa do brinco!

Agradeci muito!

Tomei banho e ajudei um casal de coreanos que estava no beliche ao lado.

Sem falar a língua deles e com o pouquíssimo inglês que sabiam, descobri que ela precisava de ajuda com o pé.

Ensinei como drenar a bolha e coloquei um curativo no pé dela.

Eles ficaram muito felizes.

A Vivi pegou nossas roupas para lavar e secar.

Paguei 3,50€ e depois de 1h30 as roupas estavam secas e dobradas sobre nossas camas.

Saímos para assistir à Missa do Peregrino às 18h.


Recebemos a benção e seguimos para o restaurante.

Após jantar, voltamos rapidamente para dormir.

Para mim foi uma noite ruim, pois apesar de muito cansada dormi mal porque tossi muito.

Acordamos às 6h e repetimos o ritual de arrumar mochila e sair.

Tomamos um café da máquina e um suco e caminhamos até Burguete para o café da manhã.


Ué?

Não eram 765???

Trecho ótimo, plano, sem dificuldades.

Os 3,5 km passaram rapidinho.

Foi excelente a parada - café com leite, croissant para levar, omelete de presunto e queijo, banana e suco de laranja por 6,50€.

Comemos e colocamos nossa roupa de chuva, pois começou a chover.

Seguimos no plano por um tempo e a paisagem era linda, com vários cavalos.


Aos poucos o burburinho dos peregrinos que estavam próximos foi passando.


Parece o fim do caminho, mas depois dessa porteira tem mais!

Cada um ganhando seu ritmo e logo eu e o Gemba estávamos sozinhos no Caminho.

Falei para meu companheiro de viagem sobre os raios.

No Caminho não é tão preocupante quanto no Brasil, onde o número de raios é muito maior.

Lembrei do End, um amigo querido que faleceu jovem demais.

Lembrei que ele me ensinou algo com sua partida repentina.

Estávamos prestes a escrever um projeto juntos.

As agendas não casavam e acabei por desmarcar algumas vezes, mas o tempo não para, não é mesmo?

Não sabemos o dia de amanhã e a hora dele chegou antes que eu pudesse fazer algo com ele.

Não tive tempo para um amigo.

Agora é tarde demais.

Lição do dia: faça o que puder agora!

Faça pelos seus hoje!

Não deixe para depois, pois pode realmente ser tarde demais.

Lembrei da lista de qualidades e defeitos.

Há muito o que pensar, afinal são 40 anos em 40 dias.

Seguimos com garoa por caminhos lindos até que encontramos uma passagem por um riozinho, feita de pilarzinhos.

Ficamos loucos para tirar foto e um casal de holandeses se ofereceu.


O senhor, que tinha um I-Phone, me ensinou naquele momento, no meio do nada, mais uma funcionalidade do meu celular, o Airdrop.

Rimos muito agradecendo o Steve Jobs e cada um seguiu seu Caminho.

Em uma subida próxima a uma cidadezinha vi o São Francisco, e logo gritei: oi, São Franciscoooo!

Ele ficou tão contente que falou em português: bom dia, Brasillll!

Mais risadas pelo Caminho.

Seguimos falando e alcançamos uma cidadezinha com um barzinho.

Ao chegar encontramos nossas companheiras Vivi e Tamara, o casal de holandeses e mais um senhor brasileiro.

Paramos, pedimos algo para beber e aproveitamos os lanches que ainda estavam pela bolsa.

Quando eu ia iniciar minha refeição, escutei chamarem meu nome.

A voz não era nem um pouco conhecida.

Era o senhor holandês que estava me chamando para saber se eu havia esquecido um par de luvas.

Não eram as minhas, mas achei muito querido que eles, mais uma vez, se preocupassem comigo e, ainda, lembrassem meu nome.

Fui preparar meu chocolate quente quando escutei - Brasilll!

Era o São Francisco que queria me dar o pó de chocolate quente dele para eu usar.

Rimos muito e então, formalmente, nos apresentamos.

Erin era seu nome e quando soube meu nome ele riu dizendo: muito brasileiro seu nome, né Kelly?

Ele seguiu seu Caminho e nós ficamos um pouco por ali.

Nesse dia comecei a sentir uma dor horrível na coxa esquerda.

Aproveitei a parada para colocar um emplastro que aliviou um pouco.

Ainda teríamos que vencer duas subidas e uma grande descida até Zubiri.

Então aceleramos o passo.

Muito frio e lama e seguimos praticamente o tempo todo sozinhos.

Em dado momento me senti perdida.

Não via mais as setas amarelas.

Um aperto no peito fez com que eu olhasse para o céu e pedisse a Deus um sinal e a Maria, que passasse em nossa frente.

Um erro poderia ser muito ruim uma vez que as dores não passavam de jeito nenhum.

Questão de segundos e uma árvore com uma seta meio apagada apareceu e trouxe alívio na hora.

Seguimos o caminho, que era difícil.

A descida, terrível.

Muitas pedras lisas e lama.

Escorreguei algumas vezes e isso me fez pensar nas minhas escolhas.

Às vezes é tão claro o caminho a seguir e escolho o difícil.

A vida é tão simples e eu complico tanto.

Silêncio e pensamentos por alguns minutos.

Até que entre algum assunto Gemba falou que eu sou muito coração e não percebo que faço coisas que não devo.

Que conheço pessoas agora e já quero ajudar, fazer e acontecer como se já as conhecesse há tempos.

Isso não é bom.

Parei para pensar nos prós e contras desse defeito/virtude.

Mais reflexões.

Ao descer pelas pedras duras que machucavam meus joelhos, fiquei observando as formações delas.

Queria entender por que judiavam de mim.

E me lembrei de quão dura eu sou com quem amo.

Por que judio tanto das pessoas com palavras e ações?

Muitas vezes não fizeram nada comigo.

O quanto sou intolerante.

Lembrei do papel de novo.

Refleti sobre o meu ponto de vista.

Quero ser aceita.

Quero fazer valer a minha verdade.

Mas cada um carrega consigo a sua verdade.

E comecei a exercitar.

Ouvir, aceitar, calar.

Difícil, mas não impossível!

Já estávamos cansados com a descida quando finalmente avistamos a cidade de Zubiri!


Ao entrar nela havia um rio onde ciclistas lavavam suas bikes.

Aproveitei para lavar minha bota e a calça de chuva, que estava um barro só, ficou para outro dia.


Zubiri à noite.

Chegamos ao albergue municipal e ainda restavam exatamente quatro camas.

Nos apressamos em pagar 8€, pegamos o carimbo e enfim tiramos as botas e deixamos no lado de fora do albergue.

Coloquei meu saco de dormir na cama e me apressei para tomar um banho e relaxar um pouco no chuveiro.

O albergue municipal é bem simples, mas limpo.


O banheiro é misto, o que significa que há cabines com vaso sanitário que podem ser usados por homens e mulheres.

E as pias também.

De um lado seis chuveiros para mulheres e do outro lado da parede mais seis para homens.

Voltei e avisei a turma que não jantaria.

Comi um lanche no beliche e organizei minhas coisas.

Queria relaxar um pouco.

Logo vi que infligi uma regra importante dos albergues: não se pode comer no quarto para não juntar bichos como baratas, formigas e ratos.

Tarde demais.

Mas aprendi para não cometer o erro novamente.

Todos foram jantar menos eu, Nany e o casal coreano.

Eles me reconheceram e ficaram felizes em me ver.

Quando todos saíram, eles me chamaram e em sua língua pediram que eu sentasse e apontaram minha perna.

Eles haviam percebido que eu estava mancando.

Eu levantei a calça até os joelhos e eles colocaram dois pequenos emplastos redondinhos fazendo com que, após um minutinho, não tivesse mais dor.

Agradeci muito, ficamos mostrando fotos da família e rimos juntos.

No Caminho somos realmente todos irmãos, uns ajudam os outros.

Esse é o real sentido do Caminho e da Vida.

Logo os outros retornaram do jantar.

Rimos um pouco e logo adormecemos cansados, mas realizados.

Antes das 5h30 eu já estava acordada.

Esperei um pouco até que mais alguém acordasse e, enquanto isso, me alonguei na cama mesmo.

Sai do alojamento correndo para o banheiro que ficava do lado de fora.

O frio estava de lascar.

Nos arrumamos e às 6h30 saímos com Vivi, Tamara e mais um casal de brasileiros: os gaúchos Rogério e Andréia.

Paramos em um café e comemos croissant, suco de laranja e café com leite.

Pedimos um bocadillo para levar e a conta ficou salgada: 13,50€ para cada um.

Peregrino que é peregrino não gosta de gastar.

Seguimos por trilhas deliciosas e como o tempo ajudou, paramos um milhão de vezes para fotografar.

Isso fez com que nossa jornada fosse muito longa e a chegada a Pamplona super tarde.

Andréia e Rogério pareciam iguais a nós e acabamos ficando juntos.


Vivi sempre estava à nossa frente com sua vitalidade e Tamara sempre piano e lontano (devagar e sempre).

Nós, nessa altura, estávamos tentando conhecer o nosso ritmo.

Passamos por uma cidadela e reencontrei o casal coreano.

Won Hee é o nome dela, uma das poucas coisas que me lembro.

A dor na perna ainda insistia em me incomodar e isto só me fazia pensar de novo em ritmo.

Era este o ensinamento do dia.

O Caminho queria me mostrar como é difícil seguirmos o ritmo do outro.

Quanto dói ser acelerado e quanto incomoda ter que ir devagar quando se quer correr.

Então, a lição para mim era clara: siga seu ritmo, mas deixe o outro seguir o dele.

Eu, sempre acelerada, acho que todos têm que estar na mesma vibe que eu.

Quantas vezes acelero meus pais, minhas cachorras, aqueles que se aproximam de mim.

Imagino o quanto já fiz pessoas sofrerem por isso.

Procurei pensar em cada uma delas e mentalizar o meu pedido de perdão a todas as pessoas que já fiz sofrer.

Paramos em uma cidade para tomar café da manhã e a esta altura já éramos amigos do casal.

Nos divertimos com o dono do bar, que adora brasileiros.

Aliás, todos no Caminho amam brasileiros.

Tomei um chocolate quentinho que me custou 0,65€ e comi as madalenas que tínhamos trazido.

Ao ir ao banheiro deste bar vi a placa na porta: Carpe Diem - aproveite seu dia - pois era isso mesmo que faria.


Aproveitaria cada segundo.

Seguiria o ritmo do vento.

Pararia quantas vezes fossem necessárias para que eu realmente aproveitasse meu dia.

Aquecidos, seguimos o caminho que aos poucos foi revelando as surpresas do dia.

Vários campos com cavalos lindos me fizeram lembrar meu enteado Gabriel, louco por cavalos.

Chegamos a um local em que dois cavalos estavam bem juntos à cerca para que os peregrinos pudessem acariciá-los.


Foi a primeira vez que tive coragem de chegar próximo e dar um carinho em um ser tão grande.


Tomei coragem!

Coragem.

Às vezes sou tão corajosa, mas às vezes tenho medo de coisas que não dão medo na maioria das pessoas.

Nova lição do caminho - avaliar as situações, enxergar o real e afastar os fantasmas das crenças enraizadas em mim.

Na descida, um barulhinho bom nos acompanhava.


Um momento para contemplar o rio.

Uma das fotos que mais amo.

Era um rio, lindo, vontade de tirar as botas e ficar um tempo ali mesmo.

Mas isso é impossível e fatal.

Molhar os pés durante o caminho é sinônimo de bolhas e nenhum peregrino quer isso.

Parei ali por alguns minutos, observei o curso das águas e tudo fluía com seu ritmo próprio.

Até as lesmas do caminho pareciam que queriam me dizer algo.

No caminho encontramos muitas lesmas pretas e elas estão cada uma no seu tempo e piano e lontano, chegam a algum lugar.

Voltei a lembrar das pessoas que magoei com essa pressa louca que faz parte de mim.

Continuamos com o casal e paramos para as lesmas, flores, comer, banheiro, rir, chorar de rir, enfim, paramos muito ao longo do caminho.

Foi um dia extremamente agradável e inspirador.

Já estávamos cansados quando vimos um desvio.

A cidade era Zabaldika e a Igreja de Santo Esteban ficava no topo de um morro.


Chegando na Igreja.

O corpo e os pés não queriam esse desafio, mas o coração falou mais forte e enfrentamos mais esta etapa.

Ao chegar neste local, uma energia impressionante tomou conta de mim.

Queria ficar ali por horas, simplesmente parada.

Entramos, escrevemos nossas intenções e pedidos em post-it e colamos ao redor do Cristo Crucificado.


Pedidos em post-its.

E ali fiquei parada.

Os demais foram seguir a tradição de tocar o sino.

A freira perguntou se eu não queria, mas meu coração pedia silêncio.

Agradeci e expliquei o motivo e ela se despediu com um belo sorriso.

Deixamos o local e continuamos a jornada.

Passamos por vários povoados e foi um longo trecho que não acabava nunca até chegarmos a Pamplona.

Após a chegada à cidade tínhamos que atravessá-la em busca do albergue Jesus Maria, que ficava para dentro das muralhas.

Chegando ao albergue, o ritual de sempre.

E hoje corremos pegar uma máquina de lavar.

Conseguimos uma e colocamos a roupa do grupo.

Ótimo negócio, máquina de lavar sem custo, 1€ pelo sabão e 2 € para secar.

As máquinas demoram muito, então deixei lavando enquanto ajeitávamos as mochilas para o Jose levar para Puente La Reina, no albergue Estrela Guia que é dele e da Natalia (gaúcha casada com Jose, o taxista amigo).

Quando voltei à lavanderia, havia um grupo de espanholas para lavar roupa.

Porém eu e um grupo de italianos (era o que eu pensava, mas eram espanhóis) estávamos ocupando as máquinas de lavar que não paravam nunca mais.

Começamos a rir muito e torcer pelas máquinas para ver qual máquina, de qual país, terminaria primeiro.

Um grupo era a torcida do Brasil e o outro grupo, da Itália.

Todos que passavam achavam que éramos loucos.

E estavam certos, afinal quem é que tem torcida organizada para máquina de lavar?

Por fim a Itália ganhou do Brasil por segundos e coloquei a roupa na secadora para irmos jantar.

O meu grupo comeu Menu do Peregrino e eu, um pincho.

Pinchos são vários tipos de entradinhas como temos no Brasil, porém o que diferencia e, torna uma delícia, é que eles ficam expostos no balcão e você escolhe o que quer e come quantos de cada quiser e paga pela unidade - não tem que pedir porções.


Me apressei em correr para a praça da prefeitura onde encontrei Jose, o taxista amigo.

Ele veio para me levar ao El Corte Inglés.

Calma, não foi dia de shopping e sim, necessidade.

O cabo de celular não estava bom e fomos até lá para comprar um.

Gastei 39€ e, como eu disse, peregrino que é peregrino detesta gastar dinheiro!

Voltei para o hotel e avisei o grupo para separar as mochilas enquanto eu tirei as roupas da secadora.

Levamos para o Jose que mandou tudo para Puente La Reina.

Ficamos apenas com o necessário para o dia seguinte.

Já estávamos tão peregrinos que mandamos até nosso saco de dormir.

Corremos em um mercadinho e compramos o café da manhã do dia seguinte - ficou 2€ para cada um.

Ótimo negócio.

Voltamos para dormir no albergue e logo nos arrependemos de ter enviado o saco de dormir.

Passamos muito frio, mas sobrevivemos.

Na manhã seguinte acordamos todos cedo e descobrimos que todos dormiram mal, sentindo falta do saco de dormir.

Começamos a pensar em como dificultar nossa vida de peregrino e rimos muito com a ideia de fazer o trecho de descida usando vaselina nos pés e havaianas.

Insanidade total.

Efeitos do Caminho.

Saímos cedo, tendo como destino final Puente La Reina, para enfim conhecer a Natália, esposa do Jose.

Este foi um dia de lembrar demais de minha mãe.

Como ela é um ser tão especial para mim.

Com aquele jeitinho que ela está agora, depois da conversa com Deus (rss), ela lembra de muitas músicas e uma delas fala sobre colher macelas no campo das macelinhas.

Passei por vários campos que eu pensava serem de macela, mas que na verdade eram canola.

Lindas, floridas e amarelinhas.


As macelas... que eram canola!

Um contraste lindo com o verde escuro de uma outra plantação.


Além disso, ela me contava sobre as papoulas.

Que quando ela era criança, achava nos campos e passava no rosto para ficar vermelha.


Entenderam a fofa ilustração do post agora?

E no meio dos campos de canola, coincidentemente, sempre encontramos papoulas vermelhinhas.

Caminhada gostosa, dia lindo, e o Alto do Perdão para alcançar.

Subida um pouquinho difícil, mas valeu cada centímetro.

Os moinhos de vento nos acompanhavam lado a lado.


Ao chegar ao topo, a grande escultura em ferro em homenagem aos peregrinos.

Muito vento, muito lindo.

Encontramos um brasileiro, Rodrigo, que tirou muitas fotos para nós.


Alegria sem fim... chegar ao Alto do Perdão foi emocionante,

pois já havia visto fotos deste local tantas vezes,

em tantos livros e sites e de repente,

tcharammm,

EU ESTAVA LÁ!!!



Eu e meus amigos integrados aos primeiros peregrinos...

Ai ai... posso voltar para lá agora ?

No topo do Alto do Perdão encontramos, também, um trailer que destoava de toda a paisagem.

Apesar disso compramos um delicioso e refrescante suco de banana e laranja que nos revigorou.

A conta é que não foi muito legal: 4€ por um suco!


Paramos por aqui com o livro da Kelly nessa segunda parte... na próxima vamos caminhar com ela até Atapuerca.

E agora vamos ao meu interrogatório particular!

Eu: Você fez várias reflexões ao longo desse trecho, de todo o Caminho. Essas reflexões trouxeram mudanças práticas à sua vida atual?

Kelly: Sim, mas diferente do que muitos podem pensar, não voltei santa. (risos)

E continuo tendo problemas...

O que muda é como vivo cada dia...

Hoje eu valorizo mais as pequenas coisas, não sou tão exigente, por exemplo, em viagens... antes para dormir, comer, era super criteriosa.

Agora pouco me satisfaz.

Viajo com pouco... antes uma mala lotada para um final de semana ainda deixava a impressão que faltou algo.

Todos os momentos com a minha família e amigos importam muito!

Aqueles que não são importantes em minha vida estão cada vez mais longe de meus pensamentos e da minha energia... antes perdia muito tempo sofrendo com eles.

Os problemas continuam existindo, mas a forma como os encaro é diferente.

Sofro só o necessário e quando necessário... antes sofria demaissss antecipadamente.

Eu: Você chegou à Pamplona no início da primeira parte do livro. E agora está na cidade novamente. Explica melhor esse roteiro prá gente...

Kelly: (Risos)

Quando o peregrino decide fazer o Caminho, ele pode escolher de onde quer começar e se quer fazer todo o percurso de uma só vez, ou começa e termina em outro ano, enfim, várias possibilidades.

Eu escolhi por fazer o caminho francês e sair andando de Saint Jean Pied de Port ( SJPP ).

Para isso tem que chegar ate lá.

O caminho mais fácil é chegar por Madrid, pegar trem para Pamplona e depois um taxi para SJPP.

Como cheguei à Pamplona tarde para ir direto para SJPP, optei por dormir no albergue de Pamplona e iniciar a caminhada no dia seguinte.

Eu: O que você aprendeu sobre “cuidar do pé” ao longo da viagem? Que dicas você pode dar para as pessoas que caminham muito? Nossa amiga Carol, que fez o Caminho antes de você, me ensinou a hidratar o pé com azeite antes de começar o dia. Adotei essa dica nas minhas viagens e fez total diferença.

Kelly: O pé é muito importante... é seu meio de transporte.

A pior coisa para mim foi que eu, para acordar de verdade, preciso de um banho pela manhã... ESQUEÇA.

Banho só na noite anterior.

O pé precisa secar antes de qualquer coisa e se toma banho cedo, não há no mundo nada que faça ele secar como deve...

Banho de manhã = muitas bolhas.

Hidratar é essencial.

Várias maneiras são úteis.

Não usei azeite, usei Atrito Zero (um produto que nada mais é que vaselina com qualquer coisa a mais para ficar mais caro) e quando acabou usei Bepantol.

Vaselina, azeite, Bepantol, Hipoglós... tudo vale a pena para manter o pezinho a salvo.

Passe no pé inteiro, desde o calcanhar até entre todos os dedos, pontas dos dedos, tudooo.

Todos os cantinhos.

E depois coloque a meia.

Eu usei duas meias.

A primeira camada era uma meia da marca SOLO, com tecnologia com fio de prata, etc, etc.

Depois uma meia 0% algodão.

As meias de algodão retêm o suor e ficam encharcadas.

As 0% "jogam o suor pra fora da meia” rapidamente.

Geralmente são de lã.

Comprei tudo fora do Brasil, por conta do valor.

Mas existe aqui também.

Achei, no Brasil, no Mundo Terra.

No Canadá, na Sail.

E nos EUA, na Dicks Sporting Goods.

Na hora do almoço eu sempre tirava a bota, deixava o pé respirar, passava mais Bepantol e trocava as meias.

Prá mim foi excelente.

Tive poucas bolhas e por puro descuido. Ao menor sinal de que algo entrou na sua bota, PARE.

Na hora.

Não importa se os outros estão indo e você ficará prá trás.

PARE.

Tire sua bota e verifique.

Às vezes é um grãozinho mínimo, mas que vai ferrar seu pé!

Se tiver bolha tem que tratar na hora que perceber.

Como?

Tive que aprender e fiz no meu pé e no de quem precisasse.

Não dói!

A dor da bolha é muito maior que esse procedimento.

Você vai precisar de swab (um lencinho com álcool que é vendido em qualquer farmácia), agulha (use somente em você... trate os outros com a agulha deles), linha e isqueiro.

Esterilize o local da bolha com o swab.


Imagem da própria empresa.

Cada envelope tem um lencinho com álcool para desinfetar o local da bolha antes de fazer o curativo.

Esterilize a agulha com o isqueiro, coloque um pedaço de linha e cruze a bolha com a agulha de forma que a linha passe dentro da bolha.


Imagem do site Cultura Mix.

Quando a linha estiver dentro da bolha, deixe ela lá, com um pedaço de cada lado.

Pedaço pequeno para não machucar o pé.

Essa linha vai drenar a água da bolha.

Deixe ela lá... se tirar, a bolha volta.


A linha fica assim, passando por dentro da bolha.

Agora basta cortar os pedaços que sobraram de cada lado.

Eu usei umas proteções de silicone ao redor das bolhas.



Esse kit vem com estes adesivos cortados e swab de álcool.

Essas proteções são de silicone, meio fofinhas.

NUNCA USE COMPEED SOBRE A BOLHA.

Apesar de ser uma boa para algumas pessoas, pode acabar de vez com seu pé.

Aliás, Compeed é uma proteção de silicone.


Imagem da própria empresa.

Tem de vários formatos!

Usei muito!

Vende em qualquer farmácia da Espanha.

Eu comprei alguns nos EUA, mas lá encontra.

Sugiro usar Compeed em todo e qualquer lugar do pé que ficar rosadinho.

Ele gruda mesmoooo e vai proteger seu pezinho lindo.

Mas aí está o problema de colocar sobre a bolha - ele vai grudar e se você quiser tirar, vai sair pele e tudo.

E quase ia me esquecendo de algo IMPORTANTÍSSIMO.

Taloneira/calcanheira.

É para colocar no calcanhar, pois é facil ter uma tendinite!

Eu tive no tendão bem ali atrás do calcanhar.

Você coloca embaixo da palmilha da bota e pronto!!!

Conforto.



E vou retomar a importância da bota, que já tinha citado na primeira parte do livro.

A bota errada pode te deixar na mão.

Comprei uma da Timberland, excelente... amaciei durante 4 meses e descobri que não era a bota correta, pois ela retém suor, podendo causar bolhas e, pior, descolar a sola...

Imagina?!

Aí comprei a bota da Salomon.

Excelente!

Mas leve um cadarço extra!

O meu arrebentou no meio do caminho e graças a um amigo espanhol, engenheiro, ele foi consertado.


Esse nó foi a solução do cadarço, pois ele arrebentou no fecho.

Meu amigo abriu o fecho, passou o cadarço novamente e trouxe essa parte para o meio do cadarço.

Deu esse nó pra poder continuar a caminhar.

Poderia ter sido um problemão.

Botas largas demais ou apertadas demais podem causar tendinite.

Ao descer, botas um pouco mais apertadas pra os dedos não irem batendo na ponta na bota... e ao subir e na reta, botas firmes nos pés.

Mas nada muito justo para não causar tendinite.

Eu: O caminho é só para católicos?

Kelly: Não é.

É um caminho de fé.

É óbvio que a grande maioria é de católicos, afinal católicos creem em santos.

Mas há muitos que fazem pela sua fé, por esporte, por gratidão.

Todos são bem vindos.

Encontrei espíritas e budistas.

Eu: O que levou você a perguntar às pessoas sobre suas qualidades e defeitos? As respostas lhe surpreenderam?

Kelly: Eu queria saber como elas me viam de verdade.

E as respostas me surpreenderam sim.

Um pouquinho... a verdade dói minha gente!!

Mas tenho tentado melhorar.

NÃO É FÁCIL!

Eu: Porque valeu a pena comprar o Guia Michelin e acrescentar um peso à sua mochila?

Kelly: Ele é muito pequeno.

Carregava dentro de um saquinho plástico pendurado no pescoço, com a página do dia aberta...

Assim ia acompanhando. Ele é bem atualizado... pouquíssimos erros.

Eu: Qual é a música das macelinhas??? (Risos de cá!)

Kelly: (Risos de lá!)

Kelly, super obrigada pelas respostas e, mais uma vez, pela sua generosidade em compartilhar sua experiência conosco!

Caso você tenha suas próprias perguntas, o contato da Kelly é kellyfr@me.com.

Também preciso agradecer à Fernanda, da Fada Madrinha Design, por novamente ter ilustrado a abertura do nosso texto.

É muito lindo viver cercada por amigos, talentosos e generosos!

Desejo isso a você também!

Um beijo, um abraço e até o próximo mês!

Buen camino!


Caminhar, pensar, refletir... Assim é o Caminho. Amizade, solidariedade, amor...

Assim é o Caminho. Perseverança, esforço, fé...

Assim é o Caminho. Lágrimas, lamentos, sorrisos...

Assim é o Caminho. Dúvidas, certezas, decisões...

Assim é o Caminho. Olho e procuro minha seta amarela...

Encontro-a e fico feliz. Assim é o Caminho. Jogar a toalha, nunca!

Assim me ensinou o Caminho.

Luiz Fernando G. Vianna


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